As Provocações de Finnegans Wake

Flavio Oliveira
10 min readMay 11, 2021

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Estátua de James Joyce em Dublin

esqueça as estruturas tradicionais da literatura. Ao elaborar sua obra final, que tomou quase dezoito dos últimos vinte anos de sua vida, James Joyce (1882–1941) teve a intenção — bem-sucedida, devemos admitir — de subverter, distorcer, transubstanciar e dilacerar quase todas as regras da língua inglesa padrão, tendo extrapolado inclusive os limites da própria língua ao incluir em seu texto fragmentos de diversas outras línguas, como veremos adiante. Trata-se de um livro que poucos, mesmo entre os bibliófilos mais obstinados, podem dizer que o leram e (ainda mais raros) o compreenderam.

Minha decisão de escrever sobre o Finnegans Wake é baseada em uma genuína intenção de espalhar pelo mundo as maravilhas desta monumental e peculiar obra. James Joyce disse certa vez que tinha escrito o FW entre outros motivos, “para que os críticos tivessem trabalho pelos próximos 300 anos”. Ora, se a obra foi feita para atormentar os críticos, coisa ruim não há de ser.

Eu não me orgulho nem um pouco em assumir que comecei a ler este livro por puro exibicionismo. Tendo acabado de ler Ulisses — o outro monstro de James Joyce, que até então era minha “baleia branca” — eu estava com adrenalina e testosterona transbordando pelos poros. Naquele momento me pareceu que o FW seria apenas mais um livro grande a ser exibido na estante e incluído no currículo. Mas a verdade que se revelou foi tão cruel quanto a peça que o destino pregou na confiante seleção brasileira que enfrentou a Alemanha na copa de 2014: 7 x 1 para o Finnegans Wake, que impiedosamente tomou oito meses da minha vida e lançou ao chão boa parte das minhas convicções como pretenso leitor voraz.

“Mas por que este livro é tão difícil de ler?”, perguntaria você, leitor indignado, tão acostumado a devorar Guimarães Rosa sem olhar no dicionário, ou ler Stendhal e Dostoiévski no original. Bem, não se trata de um livro particularmente grande como um Tolstói, ou enfadonho como um Proust. O desafio em lê-lo reside na absoluta falta de previsibilidade e de sentido óbvio.

Nenhuma frase, sentença ou palavra é utilizada da forma tradicional, do mesmo modo como não se encontra ao longo do texto um enredo claramente identificável. Para enfrentá-lo (e talvez esta seja a melhor expressão neste caso) é preciso abandonar todas as aulas de redação do ensino médio sobre a imprescindibilidade do “começo, meio e fim” de uma composição. Considere a hipótese de que o fim seja o começo, que o começo esteja no fim, e que talvez não haja meio. Sobre a estrutura do livro, pode-se afirmar que James Joyce foi profundamente influenciado pelas ideias do pensador iluminista Gianbattista Vico (1668–1744), que se rebelou contra o cartesianismo e professorava em terras napolitanas suas ideias sobre a ciclicidade das coisas. Boa parte do FW é baseado nesta circularidade, que pode ser percebida no fato de que, como neste artigo, a última frase do livro conecta-se com a primeira: “A lone a last a loved a long the…” (FW 668, última sentença do livro) + “riverrun, past Eve and Adam’s, from swerve of shore to bend of bay, brings us by a commodius vicus of recirculation back to Howth Castle and Environs” (FW 1, primeira sentença do livro). Começo e fim se conectam num commodius vicus of recirculation para reforçar a ideia de que o ponto do texto que o leitor o aborda não tem importância, uma vez que ele não se baseia nos tradicionais começo, meio e fim. De fato, Joyce tinha a intenção de publicar o livro sem numeração nas páginas, de modo que o livro pudesse ser interpelado a partir de qualquer ponto. Por sorte sua opinião não foi ouvida e as páginas foram publicadas com números.

Ninguém tem absoluta certeza, mas aparentemente o livro descreve a história do taberneiro Humphrey Chimpdem Earwicker (HCE), sua mulher Anna Livia Plurabelle e seus três filhos, os gêmeos Shen e Shaun, e a caçula Issy. O que torna a coisa interessante é o fato de que esta história é contada através de uma narrativa onírica, descrevendo os sonhos de HCE, com toda imprecisão e imprevisibilidade que se espera de uma noite de repleta de alucinações. Já que em Ulisses, seu livro anterior, James Joyce narrou os eventos ao longo de um dia na vida de Leopold Bloom (16 de junho de 1905, o famoso “Bloomsday”), a noite é o palco onde os acontecimentos de Finnegans Wake se desenvolvem, particularmente durante uma noite cheia de sonhos inquietantes. Neste contexto, como o próprio JJ dizia, “era de se esperar que as coisas não fossem tão claras durante a noite, não mesmo?”.

Se as tradicionais palavras cruzadas e os livros de colorir para adultos podem ser considerados uma “saudável ginástica intelectual”, os seis desafios que eu estou prestes a propor a você pode ser entendido como um “circuito death metal de crossfit extremo”, que poucos poderão terminar sem uma cãibra mental.

Escolha a melhor hipótese para a origem do nome do livro

O pesadelo dos críticos literários começa já no título da obra.

Durante todo o seu processo de criação — que durou quase dezoito anos, como dito anteriormente — James Joyce chamava sua obra apenas de “Work in Progress”. Próximo ao final da composição, ele se divertia pedindo aos seus amigos e familiares tentassem adivinhar o nome do livro. A seguir algumas das hipóteses:

  • Finnegan’s Wake (com apóstrofe) é o nome de uma balada irlandesa sobre Tim Finnegan, um pedreiro que bebe demais e acaba sofrendo uma queda — símbolo da “queda do homem” — e morre. Durante o seu velório (wake) tipicamente irlandês, regado a muita bebida, no intercurso de uma briga entre os convidados, algumas gotas de uísque — do gaélico uisce beatha, “água da vida” — caem sobre Tim Finnegan, que volta à vida e termina o velório em uma animada dança. O “wake” tanto pode ser o velório quanto o “despertar” do homem que caiu. A circularidade de Vico.
  • “Finnegan” poderia ser a junção de dois termos de diferentes línguas. “Finn” poderia ser uma alteração da expressão latina “finis”, fim. Em seguida viria “egan”, outra alteração, agora do inglês “again”, novamente. Juntas as expressões formam a ideia de “fim de novo” ou “fim e novamente”. Mais uma vez a circularidade de Vico é evocada para trazer à luz a ideia do eterno recomeço.
  • A inspiração pode ter vindo de Finn MacColl, um herói patriótico gigante irlandês, cujo corpo se encontra deitado ao longo do leito do Liffey (rio que corta Dublin), com os pés em Howth e a cabeça no Phoenix Park.

Procure as mais sessenta e cinco línguas diferentes presentes no texto

Não existe consenso a respeito da quantidade exata, mas especula-se que JJ tenha incluído fragmentos de mais de sessenta idiomas, mortas e atualmente em uso, orientais e ocidentais. É arriscado dizer que o texto tenha sido escrito em inglês, tanto pela enorme quantidade de termos em outras línguas, quanto pelas incontáveis distorções que as supostas “palavras inglesas” sofreram. Traduzir este livro é um pesadelo muito maior do que lê-lo. O fato do texto ter sido escrito em tantos idiomas chega a tornar a sua tradução quase que desnecessária, ou eventualmente inútil. Para entender boa parte dos termos traduzidos para o português, por exemplo, é imprescindível recorrer ao texto original, procedimento este que deve ser adotado inúmeras vezes ao longo de toda a peleja com o livro. A tradução para o português (?) de Donaldo Schüler, publicada pelo Ateliê Editorial, foi produzida de modo que a cada folha virada, na página esquerda esteja a versão original e na página da direita a versão traduzida, o que facilita bastante o processo comparativo.

Tome os dois trechos mostrados a seguir e conclua por si mesmo se faz algum sentido traduzi-los:

“Attention! Atención! Atençãooo! Le roi viking rend visite aus belles jeunes filles. Three Little Irish Children with the Scandinavian Giant in Phoenix Park. Y, mientras tanto, Ana alegremente con su amante se banana.” (FW 100–5)

ou

“Are we speachin d’anglais landage or are you sprakin sea Djoytsch?” (FW 485)

Inglês, espanhol, português, alemão, dinamarquês e francês em duas sentenças. Em alguns casos uma única palavra é escrita em mais de um idioma, como “speachin” (speak + spreche).

Procure as referências para os diferentes nomes de H.C.E.

Como sabemos, o Finnegans Wake provavelmente retrata os sonhos de um taverneiro chamado Humprhey Chimpdem Earwicker. Seria muito simples se JJ sempre se referisse a ele pelo seu nome, mas (claro) não é o que ocorre. Isso seria óbvio. O autor alude ao personagem principal do seu livro de diversas formas, às vezes como H.C.E., outras como Here Comes Everybody (HCE), Huges Caput Earlyfouler (HCE) e outras tantas formas perdidas no meio do texto. Os gêmeos Shaun e Shen, filhos de HCE, às vezes são pedra, árvore ou montanha. A outra filha, Issy, surge vez e outra como Isobel, representação de Isolda.

Perca-se no labirinto de trocadilhos, aliterações, rimas e canções

James Joyce lançou mão de uma infinidade de recursos linguísticos durante a sua composição. Cada palavra foi cuidadosamente escolhida para satisfazer as suas intenções subversivas e rebeldes. Há fortes indícios de que Joyce tenha cometido tantos “atentados” ao inglês padrão como forma de protesto contra a ocupação inglesa da Irlanda.

Sinceramente, acredito que a busca por estas diversas formas de trocadilhos e palavras-valise provocará, além de diversão certa, a inspiração para o significativo aumento no acervo de piadas infames a serem usadas nos diversos grupos de redes sociais.

Os trocadalhos se amontoam: “Maria cheia de Graça” pode ser encontrada como “Maria full of Grease” (“Maria cheia de Graxa”). “Making love” transformou-se em “Making loof” (“fazendo rumor”). “Your rere gait’s creakorheuman bitts your butts disagrees” (Teu retovisor é grego ou romano, mas tua bunda é uma disgrécia) (FW 214–22).

Além dos trocadilhos, as chamadas “palavras-valise” (palavras que encerram em si mais de um significado) também abundam (sem trocadilho) pelo texto, de maneira que chega a ser surpreendente quando encontramos palavras escritas do jeito certo. Alguns exemplos de palavras-varizes (desculpe, foi irresistível): “laughtears” (gargalhada + lágrimas), “chaosmos” (caos + cosmos), “funferall” (funeral + alegria para todos), “Anytongue athall” (“umúnica língua qualinguer”).

Outros casos de utilização não convencional da linguagem na prosa são as brincadeiras com as rimas e canções. Algumas passagens, se lidas em voz alta, revelam a intenção do autor, como em “Like Liviam Liddle did Loveme Long” (FW 207).

Leia a seguinte passagem em voz alta:

“Dont retch meat fat salt lard sinks down (and out).” (FW 260 12-E)

Dó, ré, mi, fá, sol, lá, si, dó… Legal, né?

Também há pequenos poemas no meio da prosa:

“Three quarks for Muster Mark

Sure he has not got much of a bark

And sure any he has it’s all beside the mark.” (FW 383–1)

Na passagem acima está a inspiração que Murray Gell-Mann (1929~) utilizou para batizar de “quarks” as partículas subatômicas enquadradas em seu esquema.

Procure pelas mais de 800 referências a nomes de rios

Anna Lívia Plurabelle, próxima ao Phoenix Park, em Dublin

O capítulo VIII, chamado de Anna Livia Plurabelle, é, sem dúvida nenhuma, o mais peculiar e famoso. Ele retrata a conversa entre duas lavadeiras que, em lados opostos do Rio Liffey, fofocam sobre a vida alheia, enquanto lavam as roupas da família de HCE.

Se o diálogo entre as lavadeiras é o principal tema deste capítulo, a teia que arrasta a conversa é o Rio Liffey, retratado de maneira a provocar a ilusão de fluidez. Parte do recurso utilizado para este efeito é a estética. O início deste capítulo é composto de maneira que visualmente se pareça com o delta de um rio, provavelmente o próprio Liffey quando deságua no mar.

O

Tell me all about

Anna Livia! I want to hear all

Além da estética, JJ incluiu neste capítulo referências aos nomes de diversos rios de todo o mundo. Segundo o próprio James Joyce “Centenas de rios percorrem o texto. Creio que se move”. Especulou-se inicialmente em trezentos e cinquenta, posteriormente em oitocentos e mais recentemente em mil e duzentos rios aludidos neste capítulo. Com efeito, mesmo após a conclusão do livro e durante o processo de tradução para alguns idiomas, das quais o próprio Joyce participou, ele continuava a incluir novas referências fluviais, de modo que o número é inexato mesmo quando diversas versões são comparadas. Algumas alusões mais fáceis de encontrar são ao Pilcomayo (FW 197), ao Rio Negro e ao La Plata (FW 198), aos Rios Moldau, Dnieper e Ganges (FW 196), e ao Orinoco (FW 213).

O nome “Anna Livia” é também uma clara referência ao Liffey (Anna Liffey), o “Rio da Vida” (river of life), sendo que neste capítulo ALP representa o próprio rio.

Abordar o capítulo VIII de Finnegans Wake buscando os nomes dos rios que nele se encerram significa levar a inocente brincadeira de caça-palavras às últimas e indecentes consequências.

Encontre os dez soundsenses e tente interpretar o seu significado

Em dez ocasiões ao longo do FW James Joyce usou o estranhíssimo recurso dos soundsenses, palavras formadas cem letras, que possuem a principal finalidade de reproduzir o som de algum acontecimento. O primeiro soundsense do livro ocorre já na primeira página, e representa o ruído da queda do home, HCE.

Mais adiante, o seguinte soundsense representa a queda de um copo (?!):

“Bladyughfoulmoecklenburgwhurawhorascortastrumpapornanennykocksapastippatappatupperstrippuckputtanach” (FW 90–31)

Estas palavras-mastodonte não são difíceis de encontrar. O mais interessante a se fazer é, ao encontra-las, dizê-las em alto e bom som de modo a especular sobre o seu significado. Tente fazer isso principalmente se estiver em público, pois os resultados são ainda mais surpreendentes.

Finnegans Wake não é, afinal de contas, um livro sobre alguma coisa. Ele é a coisa em si. Como o Codex Seraphinianus e o Manuscrito Voynich, a maioria de suas páginas é incompreensível, e isso importa pouco. Acostumados a sermos conduzidos, neste livro somos instigados a decidir por conta própria. Muitas pessoas que o leram (não são tantas assim afinal de contas) utilizaram o método de abrir uma página ao acaso e se divertir tentando compreender a construção do texto.

Quando escrevia suas obras, James Joyce não pedia muito: “A única exigência que faço aos meus leitores é que devem dedicar as suas vidas à leitura das minhas obras”. A incursão por sua pena vale cada segundo de dedicação extrema. Apesar disso, toda esta viagem somente será uma experiência estimulante caso você… (volte à primeira frase do artigo e feche o ciclo)

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Mecânico, consultor de gestão, mensan, pai de dois filhos, entusiasta da literatura clássica e heavy metal, e frustrado por nunca ter se tornado um banqueiro…